Prefácio à tradução brasileira de A Ascensão das Universidades, Danúbio, 2015.
Quando este utilíssimo livrinho chegou primeiro às minhas mãos, eu investigava a educação da Idade Média, em busca daquele equilíbrio intelectual que só o senso histórico pode dar, por meio de cuja posse eu seria capaz de avaliar os méritos da minha própria educação. O Prof. Charles Homer Haskins deu-me duas vantagens: a primeira, de conhecer diversos aspectos importantes ou pitorescos da vida universitária medieval; a segunda, de perceber que eu, de acordo com meus propósitos no momento, não ganharia muito se continuasse a estudar o assunto.
Talvez o leitor não perceba de imediato como é que a segunda vantagem pode resultar num elogio ao livro do Prof. Haskins. Ocorre que dificilmente eu encontraria um elogio maior, para qualquer obra informativa, do que declará-la suficiente. Para a maioria absoluta dos interessados na universidade medieval, A Ascensão das Universidades será o bastante: suprirá sua curiosidade, alimentará sua inteligência, questionará seus preconceitos e enriquecerá sua cultura. Alguns poucos sentirão o aguilhão da inquietude e consultarão, na cuidadosa bibliografia de apoio (apesar de hoje bastante desatualizada), uma obra-prima como The Mediaeval Mind, ou buscarão estudos mais recentes e específicos; esses são os escolhidos da mestra História, destinados a continuar o penoso trabalho de investigar e esclarecer as condições do ensino universitário medieval. Em suma, este livro satisfaz a muitos pela sua generalidade, excita uns seletos pela sua riqueza, e acima de tudo é útil, de modos diversos, a todos.
E eu não gostaria que pensassem tratar-se de uma “obra introdutória”, como muitas há, que se propõe falar de tudo sem tocar em nada, transmitindo uns poucos rudimentos do “estado científico” do assunto para estudantes condenados a muitos anos ainda de pesquisa detalhista. Não me lembro de jamais ter lido um livro introdutório com o prazer e proveito que me vieram deste. Nele, o Prof. Haskins deu um curso completo sobre a universidade medieval, sem poupar o leitor de muitos exemplos, detalhes e citações a obras da época. De fato, poder-se-ia dizer que temos aqui um belo exemplo de como pode um especialista falar para leigos sem sacrificar nem um pouco a qualidade da informação oferecida.
Por outro lado, convém considerar que A Ascensão das Universidades resultou de um ciclo de palestras numa universidade: o palestrante era um professor universitário, e os alunos, estudantes universitários. O contexto faz do livro, então, um diálogo entre membros de um clã, sobre a origem do mesmo clã; Haskins não ignora esse dado por um só momento, e de fato parece ter planejado suas palestras neste sentido. A história da universidade medieval é, pois, também uma narrativa sobre a origem do palestrante e dos próprios ouvintes, de sua hierarquia, de seus ritos; trata-se como que de um mito fundador, e o Prof. Haskins é o pajé, o guardião das crônicas, o mestre de mitos que desvela os segredos da fundação e a história dos antepassados.
Não posso deixar de observar que, se eu mesmo faço parte do clã e se tenho, pois, interesse pessoal no seu mito fundador, também é verdade que, tendo ouvido, ao longo da formação universitária, muito falar de fetiches como “rigor”, “seriedade” e “ciência”, encontrei no Prof. Haskins uma face diferente do magistério: um espírito erudito, rigoroso, firme e no entanto humano, flexível, compreensivo. Atento às exigências do conhecimento autêntico, mas aberto a refletir sobre seu objeto de estudo e a compreendê-lo com empatia, com imaginação, como convém fazer nas ciências humanas. A universidade não parece, se tomamos este livro como manifestação sua, uma instituição fracassada ou desastrosa ― como a descreveriam alguns que, como eu, tiveram contato com ela no século XXI. De fato, se estudasse na universidade do Prof. Haskins, eu sentiria a tentação de venerá-la, de orgulhar-me dela, de lutar por uma posição dentro de sua hierarquia. Feliz ou infelizmente, aquele tempo passou, e A Ascensão das Universidades não seria hoje aceito nem como mestrado na USP. É interessante demais. Humano demais.
Caso me perguntassem, contudo, se eu gostaria de estudar na universidade do Prof. Haskins, eu responderia que não. E citaria seu próprio livro em minha defesa:
Sócrates, que era um grande professor, não oferecia diplomas, e o estudante moderno que sentasse aos seus pés durante três meses exigiria um certificado, algo tangível e externo que pudesse exibir como uma vantagem do seu estudo ― aliás, esse seria um excelente tema para um diálogo socrático. É somente nos séculos XII e XIII que realmente surgem no mundo aquelas características tão marcantes da educação organizada com as quais estamos mais familiarizados, todos aqueles mecanismos de instrução representados por faculdades, colégios, cursos, exames, formaturas e graus acadêmicos.
No trecho acima está condensada uma verdade lancinante, tão profunda quanto desagradável para nós. De fato, que posição Sócrates teria tomado nesse hipotético diálogo? Será possível que ele seria tão cego quanto nós para o fato de que a criação dessa “segunda realidade”, com suas leis, ritos, dogmas e hierarquias, substituiria e aniquilaria o conhecimento autêntico?
É evidente que, da perspectiva de um professor universitário da década de 1920, o trecho é um elogio à universidade medieval: foi ela que, ao criar todo o maquinário estudantil, tornou possíveis nossas glórias mais recentes. Na década de 1920, talvez eu estivesse de acordo. Hoje, porém, creio estar absolutamente claro que a universidade engessou as inteligências, massacrou os talentos, esmagou o verdadeiro gênio humano, sempre individual e livre, sob o peso mastodôntico da corporação.
Quem ler A Ascensão das Universidades aprenderá, por exemplo, que estudantes universitários sempre foram ― e sempre serão, eu acrescentaria ― uma verdadeira praga, danosos para si mesmos e para todos ao seu redor:
Se fosse preciso evocar evidências adicionais para dissipar a ilusão de que a universidade medieval se dedicava principalmente aos estudos bíblicos e à vida religiosa, os pregadores de Paris desse período forneceriam prova suficiente. “O coração dos estudantes está no lodo”, diz um deles, “atrelado às prebendas, às coisas temporais e à satisfação dos desejos”. “Eles são tão litigiosos e briguentos que não há paz com eles por perto; em qualquer lugar que estejam, seja em Paris ou Orleães, eles perturbam essa terra, os seus colegas e até mesmo toda a universidade.” Muitos deles andam pelas ruas armados, atacam os cidadãos e insultam as mulheres. Eles brigam entre si por causa de cachorros, mulheres e outras coisas mais, ocasião em que decepam os dedos uns dos outros com suas espadas ou, munidos apenas de facas em suas mãos e sem nenhuma proteção para suas cabeças tonsuradas, precipitam-se em combates que cavaleiros armados evitariam. Os seus compatriotas vêm em seu auxílio, e logo nações inteiras de estudantes podem estar envolvidas no conflito.
O tom condescendente do Prof. Haskins, ao longo do livro, faz parecer que esse tempo passou; no entanto, quem foi universitário nas últimas décadas sabe que, sob certo aspecto, até piorou. A agressividade estudantil continua virtualmente a mesma ― apesar de uma ilusória contenção das brigas e assassinatos que ocorriam entre os medievais ― mas hoje, com as técnicas de manipulação psicológica em massa, ela é direcionada para propósitos políticos dos mais nefastos, que (como se não bastasse) aproveitam-se ainda do prestígio residual dos universitários para ganhar uma aparência de “ideais esclarecidos”. Os scholares, sabemos agora, nunca foram esclarecidos; sempre compuseram um dos grupos mais estúpidos, arrogantes e violentos de seres humanos.
Quanto aos professores, logo também formaram suas corporações, com exames de admissão, bancas e diversos critérios de avaliação. Seu poder era grande: conferiam um certificado (licentia docendi) que, raramente usado para seu fim nominal (o de ensinar), servia no entanto para obter prestígio e altos cargos na burocracia estatal ou eclesiástica. Provavelmente funcionou bem nos primeiros anos, enquanto os professores ainda eram homens de estudo; tão logo a licentia ganhasse valor político, porém, era evidente que as corporações se encheriam de carreiristas incapazes e maliciosos, que se valeriam daquele poder para conseguir favores os mais variados e que fariam todo o possível para corromper ou eliminar do jogo qualquer estudante de talento verdadeiro, cujo desempenho brilhante, se não fosse interrompido, inevitavelmente acabaria por jogar luz sobre a charlatanice e os procedimentos escusos dos seus “pares”. Todos os que passaram recentemente por uma universidade sabem o grau de desenvolvimento ao qual o processo já chegou ― e oxalá esteja correta minha impressão, de que quase já não resta mais prestígio, na universidade, para ser sugado por esses burocratas.
Falo assim, não para persuadir o leitor da minha interpretação dos fatos ― coisa que, na minha experiência, raríssimas vezes ocorreu ― mas para ilustrar como é bem-escrito o livro do Prof. Haskins, que me permitiu chegar, com total clareza de idéias, a conclusões opostas às do seu próprio autor.
Evidentemente, não há apenas trevas na origem das universidades. Além das verdades inconvenientes e das curiosidades quase cômicas, o Prof. Haskins ensina muito que pode ser aproveitado de maneira positiva, e que talvez apele, por exemplo, às esperanças dos que ainda crêem numa “reforma da universidade”. Esses gostarão de saber que sua nobre instituição foi fundada, não como um corpo burocrático, mas bâtie en hommes ― feita de homens, e mais nada. Os regulamentos, ritos e obrigações que vieram logo depois foram respostas a necessidades desses mesmos homens (embora muitos deles, posteriores, já não respondessem a necessidades, mas a ânsias nem sempre honestas). Ninguém na Idade Média teve uma “idéia de universidade”, como o Cardeal Newman teria séculos depois.
A raiz das universidades sempre foi, ao que tudo indica, um professor. Alguém se destacava no ensino de uma disciplina, e eis que a ele acorriam alunos de toda parte, seja para matar a curiosidade ou para obter desempenho superior em alguma profissão nobre (como advocacia, medicina ou teologia). Não fique o leitor espantado se isso lembrá-lo dos antigos sofistas, do próprio Sócrates ou do filósofo Pedro Abelardo, falecido pouco antes do surgimento da Universidade de Paris. De fato, parece ser essa uma lei universal do empreendimento pedagógico: o professor é a pessoa mais importante, aquela que determina o sucesso e o fracasso das escolas e faculdades e, em última instância, do aprimoramento cultural de todo o mundo.
É claro que o professor, que aprecia um bom salário, também deve curvar-se às exigências do dever, do bom-senso e, ocasionalmente, dos caprichos estudantis. Não nos surpreendamos ao saber que ele era obrigado a começar a aula ao toque do primeiro sino, e a sair apenas um minuto depois do último; nem evitemos sorrir ao descobrirmos que ele era proibido de pular capítulos e que estava obrigado a expor um livro inteiro (do começo ao fim) dentro do prazo do curso ― nada de passar três meses discutindo bibliografia. A maioria dos nossos professores universitários gritaria de horror diante dessas exigências; mas elas eram, na opinião do mestre medieval, bem razoáveis ― pois os alunos daquela época, como até hoje é hábito dos homens normais, valorizavam seu dinheiro.
Como quem conta casos de família, cheios de interesse pessoal e anedotas graciosas que suavizam a densidade de sua erudição, o Prof. Haskins conduz seus leitores a um conhecimento geral, mas sólido, da universidade primitiva. Não poupa suas imperfeições, nem exagera seus defeitos, nem louva demasiado suas qualidades; tampouco adota a monotonia insuportável da imparcialidade; faz sempre questão de ilustrar o assunto com sentimentos firmes, serenos e, não obstante, intensamente pessoais.
Está de parabéns a Danúbio, que traz aos leigos um livro perfeito, aos historiadores, uma excelente introdução ao assunto, e à cultura do país, um estímulo significativo ao estudo dessa época fascinante em que surgiram as universidades.